ESCRITO POR (M)IGUEL LOUREIRO sobre o trabalho de figurinos para a folha de sala



(M.)

Primeiro surgem certos tópicos encontrados no material de páginas desenvolvidas por Michaux, como doença, como palhaço...a partir daqui: que reflexo disto no desenho? no traço? na imaginação dos tecidos, das suas cores, das suas texturas? Na súmula de tudo isto: que figuras?

À (M)ariana pertence o labor destas figuras, construir com corpos e roupa essa entidade dramatúrgica que ocupará o espaço do espectáculo no tempo que lhe é devido. As fontes sucedem-se: Michaux – texto, M – gráfico, afinidades electivas com determinadas ideias: a flor que é insecto que é flor. Libélula? Será perceptível com os filtros azuis que hoje se teimam em utilizar para arrefecer a luz? Às vezes, enquanto espectador ou cúmplice de trabalho, é nos desenhos de M. que encontro o fio do novelo para poder vislumbrar antecipadamente a cena. Os seus “carnets” de conspiração trazem com eles a anunciação da terra, da paisagem, do tempo, do peso, do clima, a que pertence aquela ideia ou aquele texto.

Aqui: botões, fechos e ferragens pôem o (M)ichaux dentro de etantdonnés de (M)arcel. Também outro M: Mertz tinha a casa na árvore. M. tem a casa como casaco. Nos ensaios de Inverno (M)ariana costuma usar um casaco preto, longo, com um ar ultra-confortável e definitivo: o seu casaco-casa.

Nos primeiros desenhos para (M)ichaux a mão faz a tentativa pavloviana do risco sem estudo, sem intenção, talvez sem vontade, o decalque possível daquilo a que a teoria literária designou por automatismo. Depois questiona-se: que figuras para tais caracteres? A seguir o olho torna útil a teimosa independência da mão com arredondamentos e interpretações; afinal uma linha sinuosa, resultado de uma certa tremura do traço, pode bem ser a silhueta humana na aba de um casaco. A cabeça, a cara, o rosto, perfis, narinas, queixos, papos. Quanto ao jogo de cores e padrões para além de precisarem da cumplicidade da iluminação, resultam talvez de zonas mais inexplicáveis da cabeça de M., que para simplificar chamarei imperativos dramatúrgicos.

As primeiras cores deste espectáculo não se conseguem fixar. São rápidas, escondem-se, desaparecem, apagam-se, cinzento? preto? pardo? pele? cinzento? Um perfil amarelo intenso é decerto garantido e mais para o fim um vermelho quase líquido ensombra ou enrubesce a grande cara de boca perdida. Baton a escorrer, hematoma, fogo que mutila, pétala gigante de uma orquídea impossivel em forma de M.



MICHAUX POR MICHAUX




ALGUMAS INFORMAÇÕES SOBRE 59 ANOS DE EXISTÊNCIA

1899, 24/5 Namur

Nascimento numa família burguesa.

Um dos avós de origem alemã.

Ascendência distante espanhola.

1900 a 1906, Bruxelas

Indiferença, inapetência, resistência

Desinteressado

Enfada-se com a vida, os jogos, os divertimentos e a variedade.

Comer repugna-o.

Os odores, os contactos.

A sua medula não fabrica sangue.

O seu sangue não ama loucamente o oxigénio.


Anemia

Sonhos, sem imagens sem palavras, imóvel.

Sonha com a permanência, com a perpetuidade sem mudança. A sua maneira de existir à margem, a sua natureza de grevista assusta ou exaspera.

Enviam-no para o campo.

Envergonhado daquilo que o rodeia, de tudo o que o rodeia, de tudo o que desde que veio ao mundo o rodeou, com vergonha de si mesmo, de ser apenas o que é, desprezo também por si mesmo e por tudo o que conheceu até ao presente.

Continua a ter nojo dos alimentos, enfia-os nos bolsos embrulhados em papel e quando sai enterra-os.

Putte-Grasheide, 1906 a 1910

Lugarejo na campina.

Cinco anos em internato.

Internato pobre, duro, frio

Estudos em flamengo.

Os seus condiscípulos são filhos e filhas de pequenos camponeses.

Secreto.

Reprimido.

Envergonhado daquilo que o rodeia, de tudo o que o rodeia, de tudo o que desde que veio ao mundo o rodeou, com vergonha de si mesmo, de ser apenas o que é, desprezo também por si mesmo e por tudo o que conheceu até ao presente.

Continua a ter nojo dos alimentos, enfia-os nos bolsos embrulhados em papel e quando sai enterra-os.

1911 a 1914, Bruxelas.

Regresso a Bruxelas. Salvo! Prefere então uma realidade a outra. Começam as preferências. Atenção, mais cedo ou mais tarde, a pertença ao mundo far-se-á. Tem doze anos. Combates de formigas no jardim.

Descoberta do dicionário, palavras que não pertencem ainda a frases, não ainda a fazedores de frases, palavras e em quantidade, e das quais cada um poderá servir-se à sua maneira. Estudos com os jesuítas. Com a ajuda de seu pai, interessa-se pelo latim, bela língua, que o separa dos outros, transplanta-o: a sua primeira partida. Também o primeiro esforço contínuo que lhe agrada.

Música, um pouco.

1914 a 1918, Bruxelas.

Cinco anos de ocupação alemã. Primeira composição em francês. Um choque para ele. Tudo o que encontra na sua imaginação! Um choque até para o professor que o empurra para a literatura. Mas livra-se da tentação de escrever, que poderia desviá-lo do essencial. Que essencial? O segredo que desde a primeira infância suspeitava existir algures e do qual aqueles que o rodeiam não estão visivelmente ao corrente. Leituras em todos os sentidos. Leituras de pesquisa para descobrir os seus, dispersos pelo mundo, os seus verdadeiros pais, - para descobrir aqueles que talvez “saibam” (Hello, Ruysbroek, Tolstoi, Dostoievsky). Leituras das vidas de santos, as mais surpreendentes, as mais afastadas do homem médio. Leituras também dos excêntricos, dos extravagantes ou dos “Jovens Bélgica” com a língua bizarra que quereria mais bizarra ainda.

Depois de terminar o liceu, estando a universidade fechada por causa da ocupação, dois anos de leituras, bricolage intelectual.

1919

Prepara o p.c.b.

Não se apresenta a exame.

Abandona a medicina.

Roterdão

Segundo embarque. No ‘O Vitorioso’.

1921, Marselha

Tem de afastar-se do mar.

Regresso à cidade e às detestadas pessoas.

Nojo.

Desespero.

Trabalhos e empregos diversos, medíocres e mediocremente exercidos.

Auge da curva do “falhado”.

1922, Bruxelas.

Leitura de Maldoror. Sobressalto... que em breve despoleta nele a necessidade, há muito tempo esquecida, de escrever.

Primeiras páginas. Franz Hellens depois Paulhan veêm aí qualquer coisa, os outros não vêem nada. Sempre reticente. Não gostará de “ter de “ escrever.

Isso impede de sonhar. Isso fá-lo sair. Prefere ficar enrolado. Bélgica definitivamente abandonada.

1924, Paris

Escreve, mas sempre partilhando.

Não consegue encontrar um pseudónimo que o englobe, a ele, ás suas tendências e ás suas virtualidades. Continua a assinar com o seu nome vulgar, que detesta, que o envergonha, como uma etiqueta que trouxesse a menção “qualidade inferior”. Talvez o guarde por fidelidade ao descontentamento e à insatisfação. Não produzirá pois nunca no orgulho, mas arrastando sempre esse embaraço que se colocará no fim de cada obra, preservando-o assim do sentimento mesmo reduzido de triunfo e de conclusão.

1925

Klee depois Ernst, Chirico... extrema surpresa. Até aqui, odiava a pintura e o próprio acto de pintar, “como se não houvesse já suficiente realidade, dessa abominável realidade, pensava. Ainda querer repeti-la, regressar a ela!”

Empregos diversos. Algum tempo numa casa de edição, ao serviço da fabricação.

1927, Quito

Viagem de um ano ao Equador, com e em casa de GANGOTYENA, poeta habitado pelo génio e a infelicidade.

1929

Morte do seu pai. Dez dias mais tarde, morte da sua mãe.

Viagens pela Turquia, Itália, África do Norte...

Viaja contra.

Para expulsar de si mesmo a pátria, laços de todos os géneros, laços de cultura grega ou romana ou germânica ou de hábitos belgas.

Viagens de expatriação.

A recusa no entanto começa a ceder um pouco ao desejo de assimilação.

Terá muito a aprender. Isso será demorado.

1930-1931, na Ásia

Enfim a sua viagem.

As Índias, o primeiro povo que, em bloco, parece responder ao essencial, que no essencial procura a saciedade, enfim um povo que merece ser distinguido dos outros. A Indonésia, a China, países sobre os quais escreve demasiado depressa, na excitação e na surpresa maravilhada de ser tocado a tal ponto, países sobre os quais seguidamente terá de meditar e ruminar durante anos.

1932

Lisboa – Paris.

1935

Montevideo, B. Aires.

1937

Começa a desenhar mais.

1939

Brasil

1940, Janeiro

Regresso a Paris. Em Julho, êxodo. Santo António. Em seguida Lavandou.

1941-1942

Lavandou com aquela que será em breve sua mulher.

1943

Regresso a Paris. Ocupação alemã.

1945

Enfraquecida pelas restrições alimentares, a sua mulher contrai tuberculose.

Juntos em Cambo. Melhoras.

1947

Quase a cura. Viagens de convalescença e esquecimento dos males no Egipto.

Fevereiro, 1948

Morte da sua mulher como consequência de atrozes queimaduras.

1951-52-53.

Escreve cada vez menos, prefere pintar.

1955

Naturalizado francês.

1956

Primeira experiência de Mescalina.

1957

Parte o pulso direito. Osteoporose. Mão inutilizável.

ABAIXO O CARTAZ!
VIVA MICHAUX!

André E. Teodósio, Paula Sá Nogueira e Marcello Urgeghe

“Escrevo-lhe das regiões da atrocidade, escrevo-lhe da Capital da multidão adormecida. Vive-se indiferente no meio do horror. As formas nobres já não se exibem. Saiba também que já não temos as nossas palavras. Recuaram dentro de nós próprios.

Ela vive, na verdade, erra no meio de nós, a CARA DE BOCA PERDIDA”

“O ferro já não pesa nada. Encontra-se na alta atmosfera, sólido, rápido, feito de maldade. Mas o pensamento pesa. Nunca pesou tanto.”

FICHA TÉCNICA



encenação e cenografia Nuno Carinhas
figurinos Mariana Sá Nogueira
actores Paula Sá Nogueira, André E. Teodósio, Marcello Urgeghe
texto Cão Solteiro a partir de Henri Michaux
apoio dramatúrgico Manuela Correia
desenho de luz Alejandro Gangotyena
montagem de luz José Manuel Rodrigues
video André Godinho
design gráfico Paulo Reis
fotografia Steve Stoer
construção de cenografia Pedro Vaz
adereços Nuno Tomaz
confecção de figurinos Mestra Teresa Louro, Natália Ferreira, Palmira Abranches


espectáculo subsidiado pelo MC / IA